domingo, 12 de dezembro de 2010

Costura ao quente

Na sua doçura foi deitar-se perto dele.

Ficou ali a escutar a honradez da narração dura e forte.

Não é para qualquer uma ser assim, só fazer-se. Costurar-se.

Tarefa difícil é ficar ali.

Fez vergonha doutra correr léguas, porque não tinha sido capaz de suportar triz de costura repetida. Repetição, por vezes, cansa muito.

Mas ela ali. Encostada nele. Ouvia com o coração. Via que tinha de dividir-se. Pensava como faria pra agradar aos filhos. Agrado de maezinha pequena. Pequena-grande.

Levantou-se após as costuras e foi até a sala, onde a outra estava. A outra havia voltado. Caído em si.

Ela, na sua doçura consoladora, comentou: "ficar assim esquenta". Referia-se a deixar o filho deitar-se no seu peito e se pôr a contar as histórias...

Outra já havia reparado no quente. Deitava-se com ele sempre procurando a quentura. De repente ocorreu - à outra - que a quentura era o masculino.

A mãezinha responde: "num é o amor?"
Foi o que ela disse.

É, foi.




Para Verônica.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

domingo, 19 de setembro de 2010

Panaceia amorosa

Ele a dizia reclamuda.
Mas ninguém pode dizê-la.
Se ela fosse recla-muda, não diria nada. Mas diz.
Afirma. Escreve.

Fazia verso e lágrima. Choro e vela.

Ele disse que não deveria ela falar tanto: panaceia de choramingos....

Se diz: panaceia, quando quer dizer-se que serve para tudo? Em termos de funcionalidade, pode ser.

Então, o amor ter seus reclaminhos pode ser funcional, às vezes.

O amor é raminho de erva medicinal.

Ela sabia disso. Panacea - deusa grega da cura.
Sabia que se pode curar com amor. Pode-se morrer também.

Veneno ou remédio - depende do quanto se toma. Depende dos particulares efeitos sobre cada corpo e cada alma pequena.

Para ela, o amor que vem ramero, é aquele do dia a dia, cheiroso em ervas.
Que se expande no ar feito aroma de frutas. Que dorme na cama feito trevinho quatro folhas em vasinho na estante.
Ou como chá de rosas que se exala fresco e suave pela casa fechada.

Ela fazia panaceia amorosa. Ralhava, reclamando amor cheiroso de sabor erótico, feito comidinha caseira prontinha sobre o fogão a lenha.

Ele esqueceu-se.

No meio da oração, ela pedia: "oh Deus, campo em flor, não abandone minha extensão, minha fervura, nem meu vapor. Faça-me regressar pequena como semente quando o amor rasgar-me a pele e o coração. Dê-me um pouco de flores em campo aonde ir ter quando perder-me. Socorre-me da noite que me encaverna e me engole."

Deus a atendia. Dava-lhe o homem toda noite, repleto de cheiros e sabores.
Ela sabia.
Seus pedidos, contudo, eram pra manter a lareira acesa.

resposta ao tédio outro

Aquele tédio conhecia de longe.
Mais que isso: isolava-o.
Queria ver se testes se aplicavam nele.
Queria que ele fosse cotidiano.
E ele era.
O dia surgia quente - naquela cidade. Sem nenhuma brisinha que fosse.
Pudera: o calor queima os miolos. Foi ficando insólita.
Eis que rumava toda semana, ao mar-outro.
Não mar-morto. Mar-outro.
Fazia novas ondas, outros ares.
Até o sal tinha gosto distinto.
Lá ela podia fazer-se. Espreguiçar-se como kundera....
Lá ela podia dormir.
O cotidiano era tingido de cores ocres e rubras - ao mesmo tempo.
Virava arco-íris cintilante.
Envernizava paredes polidas.
Esmaltava cartilagens branqueadas.
O dia saía a vapor.
Nem se contavam horas, nem fios. Ele simplesmente passava.
Das noites e das insônias,
contavam-se sempre as peripécias sonhadas.
Planos eram aos baldes confeccionados.
Elas costuravam toda noite.
O tédio era fio mais bonito! Era da cor que quisessem, aquelas falantes!
O azul nem era um. Era monte.
O monte nem era pedra. Era mar.
O mar nem era lágrima. Era riso.
Riam.
E mesmo que nada dissessem, estavam lá a matar os rijos-cristais.
Se diluíam.
Se costuravam.
Se deleitavam.
Os sonhos - nem percebiam,
já eram realidade.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Dia de meu pai

Hoje lembrei-me de meu pai.

O dia estava embaraçoso de fininha chuva e friinho plumbo. Mas - por dentro - as lembranças assaltavam o desatino.

Naquele tempo, nem sabia quanto ficaria marcada pela música. Pela água. Pelos cheiros.

Se o forçoso abraço tivesse voz, falaria de amor, pousadamente. Como passarinho em raminho de rezadeira.

Meu pai podia até ser rocha. Mas não. Se faz vegetal pra sua força nascer singela.

Das ruas que entram pelos olhos, das melodias que escapam pela boca,

admito:

fui marcada por ser maria.

Como rasos d'água amolecem olhos, chego que corôo raiz de flor.

Infância molhada de alegria e saudade de presente vivo.

Por hoje - mesmo de passos miúdos,

nada me escapa da fonte viva de meu pai.

Encontro-o a todo tempo.

Pelas árvores, principalmente. Ele legou-nos uma breve impressão de árvores. Abraçava-as no caminho, para reparar energias. Aprendi, mais do que sabia.

Fito-as nas (pai)ragens.

Paisagens que se modificam com a chuva, fininha. E nunca são estanques ou cristais.

Mas são movimentos de vento e de melodia menina. O sol banhava-nos todos.

Eu podia ouvir: mãe cantando na janela.... pai entonando voz modulada pelo simples.

As coisas são simples.

Nada é tão singelo quanto o amor.





Para Antônio.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Carta anônima

Caro,
Dizem-me para escrever-te.
Aceito.
O primeiro disparo é em mim.
Mesmo sem saber o que escrever. A cá estou.
Experiência estranha. Arrancada.
Isso me faz pensar: quantas muitas das vezes,
estranhamos estar com aqueles que julgamos conhecer.
A ti, nunca encontrei. Converso contigo, como conversando comigo mesma.
Não sabes que me lembro, que deste lado
meu deus
tu és como eu: estranho.
Daí, então, poderia contar-te segredos?
Poderia falar-te de amor?
Deveria escrever seriamente.
Ou quem sabe, austera e formal.
Mas ainda dói quando arrancamos algo.
Como saber o que farás com minhas palavras?
Como dizer se elas te encontrarão o íntimo ou
cairão terra asfaltada, sem juras e sem valor?
Fico entre pedir-te mais um pouco
ou
entre pôr ponto de basta em frases incomuns.
Mas opto
por uma terceira margem.
Pra fazer lembrar nosso poeta mineiro:
Ofereço-te Rosas!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Carta musical

Para Clandestinas



sábado, 22 de maio de 2010

Idéias gastas

Não fez, ela, como o Rei de Colassanti, que entregou ao Tempo a idéia azul, pobremente enclausurada.

Ela preferiu gastar seus dedos. As pontas.

Preferia idéias gastas, é verdade. Pois ainda, em seu visar, continham originalidades. É que se esquecem – tantas vezes – que o gasto porta histórias.

Ficam procurando começos quando, os meios e finais, encalçam diferenças tamanhas.

Sabia-se estranha. Reconhecia.

Mas as idéias tinham várias cores. Nem eram azuis, nem cores de rosa. Eram arco-íris.

Faziam pontes pra lugares mágicos de potes de ouro. Valiam muito.

Todo o resto, seu corpo, envelhecia. Até as pontas de seus pés curtiam certo cansaço. Porém, dançavam como bailarinas.

É que algumas danças pedem a leveza do gasto.

Van Gogh também sabia: seus girassóis e seus sapatos velhos, suas noites brilhantes e seus campos de trigo, não saíam dos olhos dela.

Maravilhava-se.

Dias corriam que ela achava medo. Quando topava-se triste, reencostava-se no coração dele e escutava as palpitadas. Eram firmes e quentes.

Ela, reabastecia-se.

Animada de novo, saia a ver pássaros como se soubesse voar. Não desistia.

Foi desse jeito, quando voou de avião pra encontrar-se par dele.

Nem tudo prossegue, sempre. As rudezas também congelam almas. Vez em quando, diante de sua estreiteza, rezava. Quem não se apavora, com as tempestades? Mas sabia-se, de modo gasto, que não precisava parar. Assim, prosseguia.

É que a fé é faca amolada. Traça e retraça caminho, abrindo os olhos fechados pelo cansaço. Ela não desistia.

Ele, coitado, se desesperava ao vê-la cor só. Era pra ela ser arco-íris, ele insistia.

Um dia, de tanto achar-se comum, decidiu que ia mudar-se. E, no meio de estrada sem fim, nem no começo, nem no fim, encontrou caminhos.

Viu, então, que o seu comum era o seu quinhão, mesmo desta feita, ainda ficavam idéias gastas rodopiando seus assobios.

Decidiu cantar. Canção velha e nova, conjugada.

Às vezes, desafinava que só! O coração marcava compasso.

Foi como cada qual caminho fosse feito de trilho: rastros e restos. Sonoros.

E um dia, depois de muito gastar-se, cantou pra subir.

"Carta roubada"

Do jogo que encontro em franco movimento me ocorre uma clandestinidade bonita. É que ouvindo as escrituras dessas vozes, sinto-me clandestinamente convidada a participar.

Participar de quê? Nem me pergunto.

São as sensações que me apetecem.

E, hoje nem é tão quente que os poros estejam abertos. Mas os olhos estão.

Pelas palavras-chamas fui atingida. Nada que estremeçam as pedras.

Sem que, contudo, tenha sido convidada, faço-me intrusa. Respondo a mil vozes que se entrecruzam, mesmo a noite ainda encontro inesperado sol.

É para dizer dos encontros. É para registrá-los.

Com o tempo, com o sol, com as máscaras em baile, com a rebeldia, com o amor, com as mil e uma noites... enfim. Nem tudo que ultrapassa a tela cinza faz sentido. Mas se diante do nonsense podemos ainda clandestinar, é porque nem tudo está pronto. E não estando, podemos pôr a funcionar.

Outro dia, enquanto a estrada roçava o horizonte, vislumbrei o mar em calmaria. Mas ele nem sempre é calmo. Ele é forte. É intruso. Entra em nós, sem que percebamos, e bota sal na vida e nos versos.

Não é curioso que tenho um mar nos olhos?

Aos bons encontros. Potencialmente clandestinos.

Abç.

Cf.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

terça-feira, 27 de abril de 2010

Fim de tarde e café

Hoje a incapacidade de distrair-se se atirou sobre o carro.
Por sorte, não o atropelei.
Falo de um velho. E acredite: não o estou xingando, ao chamá-lo assim.
Na verdade tive medo e pena.
Medo de sua violência diante de meu deslize distraído de passar pela faixa de pedestre, ao olhar para um café ao lado, num fim de tarde cansado.
Ele queria atravessar a faixa e estava do lado oposto ao meu olhar.
Minha distração quase custou-me caro.
Logo vi - assustada - que ele esbravejava sem cessar. Socava a lataria do carro e berrava.
Parei e abri os vidros.
Ele continuava batendo e gritando: "Não viu a faixa? Sua bruaca! Não viu a faixa?"
Agora, chego a considerar cômica a situação, mas tenho pena.
Eu explicava: "Perdão, senhor, perdão, eu não o vi." Ele gritava.
Não queria minha explicação ou meu pedido de perdão.
Tive medo dele não conseguir parar.
Os olhos dos outros assistiam à cena, encabulados. Talvez todos concordassem com os gritos do velho, condenando minha distração. Eu mesma cheguei a condenar-me rapidamente.
Mas o que eu podia fazer era dizer -lhe: "Perdão, senhor, perdão, eu não o vi."
Talvez mais que a nossa incapacidade de distrairmo-nos, tanto ódio foi o de tornar-se por um momento invisível.
O senhor deve ter sentido muita raiva.
Resta-me dizer-lhe que o anonimato às vezes nos atinge, irremediavelmente.
Acostuma-te.
E, se para sermos vistos, tivermos de usar violência,
continuarei distraída -
preferindo fins de tarde e cafés.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

quarta-feira, 31 de março de 2010

Estilismo de si

Permanentemente estás a mudar...
Improvisação de intensidade pura
a abandonar-se
em fluxo transversal.
Não há como caminhar tão só
sem que nenhuma mudança aconteça.
Do quadro que estavas a pintar
a indistinção de alguns traços
limitava outros.
Tua arte, tua obra
dispersa
acalenta-me em deriva.
Tua repetição em mim
forja o inesperado.
Somos, ambas, travessia.


Para Sandra.

Menina vermelha

Aquela menina lia poemas
Lia-os como problemas específicos.
Queria saber de encantados enigmas.
Porém, quanto mais lia
Cecília, Pessoa em Caeiro e em Álvaro,
Drummond e Lispector
menos entendia matemática.
Na escola disseram que era distraída.
Que andava com livros na cabeça.
A professora de português alertava:
"Esta menina escreve linhas..."
E na matemática
suas linhas eram tropeços.
Ela,
a menina,
- dias se passavam -
sentia-se estranha.
Arrancada de si.
Nem linha, nem só tropeço.
Já não encontrava resposta
nem nos livros, nem na escola.
De certo sempre sofreu
um pouquinho
de melanco-lia.

Um dia temendo
toda série de decisões
passou a gastar tempo
em avulsos escritos.
E achando perder-se, meio ao indecidível,
encontrou-se.
Encontro arrancado
de improvisações,
vez em quando parava.

Gostava de tomar groselha.
Vermelha ficava.
Lembrava-se do espectro das cores.
De novo, não sabia.

Mas era de seus poros
que sua vida saía.

sábado, 27 de março de 2010

Dos Três Mal Amados - João Cabral de Melo Neto - Adaptação: Cordel do Fogo encantado

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço
O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome
O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas,
O amor comeu metros e metros de gravatas
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos
O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Neruda...


"o amarelo dos bosques
é o mesmo do ano passado?
e se repete o voo negro
da tenaz ave marinha?
e onde termina o espaço
se chama morte ou infinito?
que pesam mais na cintura, as dores ou as lembranças?"