quarta-feira, 31 de março de 2010

Estilismo de si

Permanentemente estás a mudar...
Improvisação de intensidade pura
a abandonar-se
em fluxo transversal.
Não há como caminhar tão só
sem que nenhuma mudança aconteça.
Do quadro que estavas a pintar
a indistinção de alguns traços
limitava outros.
Tua arte, tua obra
dispersa
acalenta-me em deriva.
Tua repetição em mim
forja o inesperado.
Somos, ambas, travessia.


Para Sandra.

Menina vermelha

Aquela menina lia poemas
Lia-os como problemas específicos.
Queria saber de encantados enigmas.
Porém, quanto mais lia
Cecília, Pessoa em Caeiro e em Álvaro,
Drummond e Lispector
menos entendia matemática.
Na escola disseram que era distraída.
Que andava com livros na cabeça.
A professora de português alertava:
"Esta menina escreve linhas..."
E na matemática
suas linhas eram tropeços.
Ela,
a menina,
- dias se passavam -
sentia-se estranha.
Arrancada de si.
Nem linha, nem só tropeço.
Já não encontrava resposta
nem nos livros, nem na escola.
De certo sempre sofreu
um pouquinho
de melanco-lia.

Um dia temendo
toda série de decisões
passou a gastar tempo
em avulsos escritos.
E achando perder-se, meio ao indecidível,
encontrou-se.
Encontro arrancado
de improvisações,
vez em quando parava.

Gostava de tomar groselha.
Vermelha ficava.
Lembrava-se do espectro das cores.
De novo, não sabia.

Mas era de seus poros
que sua vida saía.

sábado, 27 de março de 2010

Dos Três Mal Amados - João Cabral de Melo Neto - Adaptação: Cordel do Fogo encantado

"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço
O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome
O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas,
O amor comeu metros e metros de gravatas
O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos
O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte."