terça-feira, 29 de abril de 2008

O dia em que minha avó morreu

Era um dia cinza como carvão deitado em água
Chovia pela janela do carro
e as pedras úmidas da estrada
pareciam com meus olhos.
No caminho até seu encontro
miragens e pastagens me consolaram a alma.
Pensava:
'de tão velhos, gastos, os sapatos
deveriam mesmo descansar...
A morte não poderia tirar-lhes
as pisadas, os caminhos percorridos.'
Se, de tudo
ficarem as lembranças
não estaremos absolutamente sós.
Ah... os biscoitos, os croquetes,
os pasteizinhos de carne
que vovó preparava como ninguém...
Lembro-me de quando criança ainda
esperava ansiosa
a festa, o barulho, as gentes
a correricar a vida...
O povo vinha chegando
de repente, aquela infinidade
de rostos, de tons...
os pasteizinhos lá em cima da mesa
cheirando gostinho bom.
Feitos um a um.
Embora fossem da mesma massa,
como feitos por gente,
vovozinha,
cada um tinha um tamanho
e uma dobrinha particular.
Embora pequena, eu já antevia os milhares de sabores daquela festa
da passagem das pessoas por ali.
Muito tempo fiquei sem poder provar
os pasteizinhos...
Pois me eram tão caros
que permaneciam na miragem
ao sabor dos olhos...
Nem um, podia provar.
Era que passava mal.
Passava mal deixar de contemplar aquelas cenas.
Como se espectadora
eu pudesse registrá-los na memória.
Se pode saber o gosto
de algo sem comê-lo?
Há quem diga "detesto isso ou aquilo".... sem nunca ter provado....
Pois digo que os pastéis eram incríveis.
Tão saborosos, que só de olhar
me fazia criança-admirada
Vinham de mãos cansadas e rijas
do tempo, da falta, da dor...
Vovó tão velhinha fosse
era mais velha por suas bagagens.
Então um sapato velho
não pode ser medido por sua aparência. Senão por sua história.
No dia em que vovó morreu
atravessei longas estradas chuvosas.
Um misto de tristeza e descanso
me assolava as pontas dos pés.
Como se dissesse para mim mesma
que melhor é ir andando devagar.
E mesmo
que ora sim, ora não
entre lágrimas topasse alguém
pudesse dizer eu:
'os sapatos velhos estão a descansar.
Não chores.'
Há quem diga insana minha compaixão pelos sapatos
que certo seria deixar de fazer
tão versos tortos.
Mas os pasteizinhos, cada um
feitos da mesma massa
eram diferentes.
Marcados pelo garfo em flor
inspiravam lembranças infantis
criança que espreita detrás da porta,
da soleira,
da estrada....
vida e morte
dor e fé
caminho e saudade.
Depois de algum tempo....
o cinza se abria em cor
com os olhos lavados
pode-se enxergar melhor.
'Vai, vó.
Vai descansar.'

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