Por sorte, não o atropelei.
Falo de um velho. E acredite: não o estou xingando, ao chamá-lo assim.
Na verdade tive medo e pena.
Medo de sua violência diante de meu deslize distraído de passar pela faixa de pedestre, ao olhar para um café ao lado, num fim de tarde cansado.
Ele queria atravessar a faixa e estava do lado oposto ao meu olhar.
Minha distração quase custou-me caro.
Logo vi - assustada - que ele esbravejava sem cessar. Socava a lataria do carro e berrava.
Parei e abri os vidros.
Ele continuava batendo e gritando: "Não viu a faixa? Sua bruaca! Não viu a faixa?"
Agora, chego a considerar cômica a situação, mas tenho pena.
Eu explicava: "Perdão, senhor, perdão, eu não o vi." Ele gritava.
Não queria minha explicação ou meu pedido de perdão.
Tive medo dele não conseguir parar.
Os olhos dos outros assistiam à cena, encabulados. Talvez todos concordassem com os gritos do velho, condenando minha distração. Eu mesma cheguei a condenar-me rapidamente.
Mas o que eu podia fazer era dizer -lhe: "Perdão, senhor, perdão, eu não o vi."
Talvez mais que a nossa incapacidade de distrairmo-nos, tanto ódio foi o de tornar-se por um momento invisível.
O senhor deve ter sentido muita raiva.
Resta-me dizer-lhe que o anonimato às vezes nos atinge, irremediavelmente.
Acostuma-te.
E, se para sermos vistos, tivermos de usar violência,
continuarei distraída -
preferindo fins de tarde e cafés.
2 comentários:
Sim, Carol!
Afinal, distraídas venceremos!
Bela crônica que me fez pensar como é bom um café à tarde. No fim da tarde já não gosto tanto, prefiro no meio dela.(sentar-me num café no meio da tarde me faz pensar que sou amigo do rei, ou de Cronos).
Vou pensando aqui: distrair é trair a realidade? Ainda bem, né? assim vamos em barcos de sonhos e outros mundos.
Beijo
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